Desde tempos ancestrais que a aldeia de Travassos está ligada ao trabalho do ouro. No concelho de Póvoa de Lanhoso, a pouco mais de 20 quilómetros de Braga, o trabalho em filigrana tinha vida nessa povoação. A vontade de um homem criou um museu que preserva essas tradições que ainda se mantêm. Mais: garante o futuro de um passado enquanto preserva o presente. Numa filigrana única no mundo, de quatro fios…
Os pais de Francisco de Carvalho e Sousa não queriam ver o filho nas férias escolares pelos «caminhos». Em Travassos, aldeia do concelho de Póvoa de Lanhoso, o pequeno Francisco tinha de ir para as oficinas dos ourives enquanto muitos dos seus amigos brincavam nos campos e nos montes, paisagem verde e agreste. A ourivesaria, já nessa altura, era a actividade artesanal mais representativa do concelho, onde actualmente cerca de 40 oficinas ainda laboram. Francisco passava as férias escolares nessas oficinas de grandes janelas a descobrir, aos poucos, uma arte onde a serenidade de gestos marcava o rumo do artesão. Talvez por isso, Francisco de Carvalho e Sousa fale devagar, meticulosamente, marcando cada pormenor com contraste único. Mudando de oficina todas as férias, aprendeu a ver, a ouvir a cultura dos outros, polindo as suas ideias e desejos em sons suaves e precisos.
Quando o tempo do liceu chegou, Francisco de Carvalho e Sousa foi para Braga continuar estudos. Contudo, o caminho nem sempre é linear e nem todos podiam seguir as letras, pois as dificuldades económicas de muitas famílias limitavam sonhos. Francisco teve de voltar para Travassos aos 14 anos, à sua terra natal, e foi trabalhar para uma oficina de uns parentes. «O ouro tem de ser trabalhado com suavidade, exigência, sem falhas». A prática anterior e os conhecimentos adquiridos ao longo dos tempos de férias com vários mestres deram-lhe essas qualidades. «Quando havia períodos de crise o tempo era gasto a criar novos modelos que podiam fazer êxito ou não passavam dali. Nessa altura tive oportunidade de fazer de tudo. O meu mestre tinha uma personalidade e uma dignidade riquíssima».
Francisco de Carvalho e Sousa viveu rodeado de ouro, dos objectos que o trabalhavam. Sempre ourives, desenvolveu uma curiosidade natural por tudo o que estivesse relacionado com a arte. «Via a trabalhar com serrinhas, a cravar pedras, a diversidade das cores, as tonalidades diferentes, os tamanhos das pedras. Isso despertou-me uma curiosidade notável que me cativou para o resto da vida». Embora não o refira, talvez o regresso de Francisco a Travassos tenha sido fundamental para o Museu do Ouro ser criado. Aos poucos, já a trabalhar em filigrana, o gosto ampliou-se por esse trabalho que envolve a serenidade. «O espírito deste museu foi rememorar a cultura deste povo, dos nossos familiares, de todos os que aqui viveram e que com frequência trocavam ferramentas. Até o próprio saber pertencia à comunidade. Todos sabiam o que se estava a fazer, em que ponto estava a obra. Trocavam-se muitas conversas e convívios. Nós utilizávamos uma filigrana duplamente trabalhada, com quatro fios torcidos. Para a fazer era preciso ser um óptimo ourives, um soldador prático e sereno. Esta filigrana é única no mundo. Só aqui se faz».
Para além de rememorar a cultura daquela região ligada de alma e coração ao ouro, Francisco de Carvalho e Sousa pretendeu divulgar a cultura, o saber, a vida comunitária, «tentar fazer um esforço para salvar algumas ferramentas e um património invulgar que aqui era utilizado. Era tudo feito aqui. Idealizavam os modelos da argola fazendo primeiro o ferro, faziam os parafusos, tudo era aqui aperfeiçoado». Objectos únicos criados nesse saber e paciência humana que perduram o tempo e os desejos. Ao ser criado o Museu do Ouro está a ser feita uma homenagem a todos os ourives. E «para além de musealizar, dinamizar as oficinas ainda em laboração e colaborar na recuperação das que se encontram em ruínas, o Museu do Ouro pretende tornar-se uma instituição activa, ao serviço da comunidade que lhe deu origem, nela criando um pólo dinamizador da região e do respectivo saber tradicional, dirigido a uma ampla região e a públicos diversificados».
A moeda
Mas vamos entrar e ver. O hall de entrada era a antiga loja do carvão, o armazém do carvão. Há ali uma exposição de objectos de ouro, em filigrana, feitos em Travassos. Há ferramentas e utensílios, pesos, ferros. Olhar cada vitrina é descobrir, nas palavras de Francisco de Carvalho e Sousa, pormenores únicos de uma história que poucos parecem conhecer. Ouvem-se histórias, pode-se imaginar como se faziam determinadas peças decorativas em filigrana. Num pequeno espaço existe um mundo amplo de objectos únicos, criados unicamente para a arte do trabalho em ouro. Ao lado há umas escadas interiores que nos levam a uma oficina antiga, com mobiliário todo ele secular. «Todas as bancas são centenárias. Fizemos por montar uma oficina como se fosse para trabalhar. Se fosse preciso pô-la a trabalhar estava pronta». Com amplas janelas, as bancas viradas para essa luz que entra logo pela manhã, quente, com objectos únicos e que precisam de explicação para sabermos da sua utilidade. Engenhos humanos para trabalhar o ouro e criar peças de um saber e valor humano inigualável.
Mais à frente temos o espaço da antiga forja, um espaço escuro, agora sala do ouro. A exposição começa com uma montra que pretende mostrar o princípio da filigrana. Um pedaço de ouro bruto, uma barra de ouro puro, prata pura e filigrana já pronta. E há ali também umas pequenas moedas. O que são? «Aquela moeda iniciou tudo isto. Quando me apareceu para ser derretida tinha 15/16 anos. Mas estava perfeita e decidi pagá-la ao dono para ficar com ela. Mas não sabia o que estava a salvar, quando mais tarde soube que era uma moeda rara. A moeda foi esse desejo e vontade de guardar o passado e tentamos nunca derreter nada que tivesse história relacionada com usos e costumes da freguesia e da região. Porque os objectos trazem acompanhado o espírito criativo do seu artesão, estão carregados de valor espiritual, valem mais do que o valor real». Para além da montra que conta toda a história da criação do museu, há muitas outras com peças únicas que finalizam com um diadema de tiras, muitíssimo raro. «Talvez seja uma das primeiras peças que o ser humano fez em ouro. Deve ter cerca de 40 séculos». Saindo da sala e subindo uns pequenos degraus, há uma sala de exposições temporárias, também aproveitada para receber grupos escolares.
E porquê ouro em Travassos?
«Não está nada escrito e é difícil contar essa história. Mas chegamos à conclusão de que o verdadeiro berço das primitivas jóias deve ter sido no Norte. O rio Minho e os rios da vertente atlântica do Norte da Península Ibérica são muito auríferos. Há muito tempo que as mulheres lavavam as areias dos fundos dos rios à procura de ouro. Com caudais rápidos e acidentados, que provocam muito desgaste, é normal que o ouro apareça e seja depositado em partes mais calmas, nos areais. O facto de Travassos ser uma freguesia numa posição estratégica, sobranceira ao vale do Ave, em ligação directa com o Castro de Lanhoso e o vale do Cávado, com muita e boa água, bom barro, uma encosta apetecível para viver, foram factores de permanência de populações que criaram formas de sobreviver».
Quando abre o Museu do Ouro, em Março de 2000, houve uma ideia a fundamentar todo o projecto: «A inauguração deste museu não foi um fim, mas um princípio para uma continuidade cultural. O museu foi e vai ser um princípio não só em património, porque tem aumentado em peças, ferramentas, mobiliário, mas terá um futuro, mais amplo ou menos amplo, marcando o início de uma época e de um tempo numa aldeia do interior». Claro que o começo não foi tarefa fácil. Mas a verdade é que o Museu do Ouro abriu e preserva uma cultura riquíssima e única no mundo. Sabe Francisco de Carvalho e Sousa, numa vida dedicada de mãos e amor à filigrana e, agora, à preservação de um património único, que «de Travassos saíram muitos objectos que encheram de arte e vida muitas pessoas. Fizemos com que o museu fosse humanizado, pois aqui mantêm-se o culto da utilização dos objectos de ouro».
Museu do Ouro de Travassos
Aldeia de Baixo
Travassos — Póvoa de Lanhoso
4830-771 Travassos PVL
Telefones — 253.943.790/1
Fax — 253.943.792
www.museudoouro.com
E-mail — info@museudoouro.com
Horário
Aberto aos fins-de-semana e feriados ou mediante marcação
Junho/Setembro: 14h30 — 18h00
Outubro/Maio: 14h30 — 17h30
Fechado
1 de Janeiro
Sexta-feira Santa
Dia de Páscoa
25 de Dezembro
Acesso
Sair da A3 em Braga e seguir direcção a Chaves. Doze quilómetros percorridos, virar à direita em direcção a Póvoa de Lanhoso e seguir rumo a Cabeceiras de Basto. Manter esse caminho até encontrar, cerca de sete quilómetros depois, uma indicação, à esquerda, para Travassos — Museu do Ouro. Já há placas, mas convém toda a atenção. Virar para a aldeia e seguir na estrada até encontrar uma bela casa, a Casa de Alfena. Ao lado, inserido nesse nobre conjunto, fica o Museu do Ouro.